Sinfrônio Pedro Martins
O Cego Sinfrônio (1921)
Um dos cantadores mais espontâneos com quem tive a fortuna de travar conhecimento foi o cego cearense Sinfrônio Pedro Martins, nascido no Jaboti, perto de Messejana. Conheci-o em Fortaleza e o tive, várias vezes, comigo, fartando-me de notas interessantíssimas sobre o folclore do nordeste, pois ele conhece palmo a palmo os sertões de todos os estados acossados pela seca.
Sinfrônio cegou quando tinha apenas um ano de idade e, o que parecerá quase incrível, raros cantadores encontrei com tão vasto cabedal de romances, cantigas e desafios, tudo maravilhosamente retido na memória fidelíssima. É a mulher do cego repentista que lhe lê, pacientemente, manuscritos e folhetos até que ele os consiga recitar.
O cego Sinfrônio é, acima de tudo, perito improvisador. Ao chegar, à primeira vez, à minha casa, ele cantou, com a naturalidade de quem falava, estas sextilhas que eu anotei taquigraficamente:
Anda já em quarenta ano
Que eu vivo somente disso
Achando quem me proteja
Eu sou bom neste serviço
Eu faço vez de machado
Em tronco de pau mucisso…
Esta minha rabequinha
É meus pés e minhas mão
Minha foice e meu machado
É meu mio e meu feijão
É minha planta de fumo
Minha safra de algodão…
Eu, atrás de cantadô
Sou como boi por maiada
Como rio por enchente
Como onça por chapada
Como ferrôi por janela
Menino por gargaiada!
Eu, atrás de cantadô
Sou como abêia por pau
Como linha por agúia
Como dedo por dedal
Como chapéu por cabeça
E nêgo por berimbau
Eu, atrás de cantadô
Sou como vento por praia
Comojunco por lagoa
Como fogo por fornaia
Como piôi por cabeça
Ou pulga por cós de saia!
Feita esta original apresentação e quando eu já possuía a certeza de ter diante de mim admirável profissional do canto, arrastado a esse gênero de vida beduína, não somente por motivo da cegueira que o inibia de misteres outros, mas ainda por natural tendência de aproveitamento do excelso dom com que a natureza o compensara da perda da visão; quando percebeu que eu já estava capacitado do valimento de seu estro, Sinfrônio começou a falar-me dos cantadores que tivera de enfrentar em suas ininterrruptas peregrinações. Do seu encontro com o cego pernambucano Elias Ferreira, ele me repetiu esta introdução:
- Sinfrone, vai me contando
Que é que tu anda fazendo
Se anda dando ou apanhando
Se anda comprando ou vendendo
Se anda bebendo ou jogando
Se anda ganhando ou perdendo
- Elias, eu lhe declaro
E a todos que tão olhando
Me acho na terra alêia
Nem bebendo nem jogando
Nem ganhando, nem perdendo
Ando mas é vadiando!
Falei-lhe, incidentemente, do famoso cantador Joaquim Venceslau Jaqueira, que, de há muito, emigrara para a Amazônia. Eu conhecia de Jaqueira esta quadra:
A mió das invenções
Que eu achei mió produto
Foi a invenção do relojo
Marcando hora e minuto
Sinfrônio informou-me de que "Jaqueira, toda vida, foi um cabra da rede rasgada", jogador e beberrão. E referiu-me que o mesmo assim fizera a sua estranha profissão de fé:
Eu andei de déu em déu
E desci de gaio em gaio
Jota a-Já, queira ou não queira
Eu não gosto é de trabaio
Por três coisa eu sou perdido
Muié, cavalo e baraio!
Depois de novamente haver afinado o instrumento, Sinfrônio avisou-me que me ia falar de si mesmo. E cantou a peleja que tivera em Sobral com o cantador Manuel Passarinho:
Meu povo, preste atenção
Vou contá o que se deu
Ninguém fique duvidando
Juro como aconteceu
Vou contá de um agora
Cantô que cantou mais eu
Fazem dezenove ano
Que eu cantei mais esse tal
Ele dizendo que era
Nascido lá no Arraial
Porém a nossa peleja
Se deu com nós em Sobral!
Foi isso um dia de sabo
Quando na cidade entrei
Pela dez hora do dia
No Jaibara passei
Convite pra cantoria
Na mesma tarde encontrei
Pra casa do Zé Taveira
Fui eu logo convidado
Por um dito mano dele
Fui eu na rua encontrado
Pra casa do mesmo home
Foi outro cantô chamado
- Venha cá, seu Zé Taveira
Mais o seu mano Joãozim
Quero que preste atenção
Do grande ao pequeninim
Eu diverti mais um cego
Pra ensiná-lhe o camim…
- Venha cá, seu Zé Taveira
Como chefe de família
Do grande ao pequeninim
Oiçam minha cantoria
O homem que não tem vista
Só pode andar tendo guia!
- Ceguinho, afine a rabeca
Pode acostá-se à parede
Vem dicomê, mata a fome
Vem aluá, mata a sede…
- Cantadô, você me diga
Cumo tá no meio dos home
E não é meu conhecido
Me diga cumo é seu nome
- Eu sou Manuel Passarinho
Féli da Costa Soare
Engulo brasa de fogo
Pego curisco nos are
Jogo pau, quebro cacete
Com cinco ou seis que chegare
- Meu nome é Sinfrônio Pedro
Martim é meu sobrenome
Bóqué de nova açucena
Cravo branco, amô dos home
Feijãozim farta-guloso
É com que se mata a fome…
- Sinfrone, me conta logo
A tua disposição!
Óia que eu carrego o saibro
Das tuas informação
Andas com fama de duro
Aqui pelo meu sertão…
- Eu não sei se será falso
E se é exato não sei
Mas cantô que me açoitasse
Ainda não encontrei!
Pode sê que eu inda encontre
Até onte eu não achei…
- Sinfrone, se eu me zangá
Passo-te a peia no lombo
Dou três tapa – são três queda!
Três empurrão – são três tombo!
Se eu puxá por minha faca
Não tem quem te conte os rombo…
- Não é com essas asneira
Que eu deixo de diverti
Quem conhecê não te compra
Eu nem quero descobri…
Mas o cão é quem faz conta
De dez da fêlpa de ti!
- Cego, tu qué te metê
Em camisa de onze vara?
Quem com Passarinho arenga
Apanha, de mão na cara…
Em balança eu sempre peso
Dez cego não dão a tara
- Nunca vi barco sem vela
E nem doente sem ansa…
A onça, tando acuada
Ninguém pega com lambança!
Vigie que falá é fôrgo
Obrá precisa sustança…
Eu de dez não faço conta
Quanto mais de uma criança…
- Por causa de confiança
Foi que eu vi um pequenino
Açoitá um home idoso
Cumo você – sem ensino…
Cumo não tomou emenda
Morreu nas mão dum menino
- Você tá fazendo arte
De eu metê-lhe em sujeição
Chamo aqui por dois soldado
E te boto na prisão…
Você preso não é nada
O diabo é levá facão…
- Você ficando mais véio
E ainda arrenovando
Tornando a nascê dez vez
Todas dez se batizando
Todaas dez vindo cantá
Todas dez sai apanhando!…
- Orêia de abaná fogo
Cabeça de batê sola
Pestana de porco ruivo
Queixada de graviola
Canela de maçarico
Pé de macaco da Angola!
- Venta de pão de cruzado
Bucho de camaleão
Cara de cachimbo cru
Pescoço de garrafão
Testa de carneiro môcho
Fucim de gato ladrão
- Passarim, se eu dé-lhe um baque
Tenho pena de você:
Cai o corpo pruma banda
E a cabeça – pode crê!
Passa das nuve pra cima
Só volta quando chuvê
- Cantadô nas minha unha
Passa mal que se agonêia
Dou-lhe almoço de chicote
Janta pau, merenda pêia
De noite ceia tapona
E murro no pé da orêia
- Passarim, agora mêrmo
Começou a carretia:
Eu vou entrá no teu couro
Que nem faca em melancia
Cuié em mamão maduro
Ou crimatã na água fria
- Este cego só cantando
Por arte do capiroto!
Agora é que eu reparei
Que este sujeito é canhoto…
Eu vou saindo de banda
Senão eu saio é de chouto
Fonte: MOTA, Leonardo. Cantadores; poesia e linguagem no sertão cearense. 3ª ed. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, [1962]
Mais informações:
http://www.jangadabrasil.com.br/marco19/cn19030b.htm
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