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Valdeli Cardoso de Souza


Foto: Arquivo ANC 23/5/97

Lili mantém tradição da reza de novenas (2000)

Lili mantém tradição da reza de novenas

Valdeli Cardoso de Souza anima todos os anos a Festa do Saquinho

"Eu sou o Lili das terras dos cantadores", exulta Valdeli Cardoso de Souza ao estampar seu brejeiro refrão de apresentação que o tornou conhecido em todo o Sul da Ilha de Santa Catarina, no rezado de novenas e cantorias do Divino. Todos os anos, no mês de maio, ele afina a sua rabeca artesanal e percorre o seu "calvário de alegria", ao caminhar por uma trilha sinuosa que se arrasta sobre o costão até o povoado da praia do Saquinho, onde é festejado pela comunidade como a principal atração da tradicional Festa da Santa Cruz.

Seu Lili é um dos últimos rezadores de novena do interior da Ilha, uma tradição que o remete aos tempos de criança na localidade de Águas Mornas, em Imaruí da Laguna. "Quando eu era menino, fui picado por uma cobra e depois por um escorpião. Fiquei entrevado seis meses no fundo da cama. Minha mãe fez uma promessa para o Divino Espírito Santo: se esse menino se curar, quando crescer vai ser cantador do Divino. Aprendi com o falecido Lídio Militão, ele me deu de presente uma rabeca por ele construída. Não parei mais de cantar, de improvisar versos."

Canto em janeiro por ser Ano Novo,
Saudoso povo em festa matinal,
Em fevereiro eu canto o mês inteiro,
Se preparando para o Carnaval.

O lagunense Lili aportou no Sul da Ilha ainda jovem, para plantar arroz, a convite do agricultor Francisco Lauretti, que havia comprado algumas glebas de terra na Costa de Dentro. Casou aos 18 anos e foi morar no rio das Pacas ainda com suas dunas brancas, vivendo da agricultura e da pesca, que era abundante. "Todo aquele laranjal e bananeiras que existem naquele morro fui eu que plantei. Poderia ter sido dono daquilo tudo, mas decidi comprar um terreno na Costeira, onde moro até hoje com minha mulher e oito filhos." Nos anos 50 ainda não existia a Festa da Santa Cruz no Saquinho.
O pequeno povoado criado por ex-moradores de Paulo Lopes cultuava apenas a Festa do Divino, com o cortejo da pomba do Divino partindo em romaria do Pântano do Sul. A comunidade descobriu que um rezador e tocador de rabeca morava nas redondezas e o convidou para rezar a novena. Lili nunca mais parou e demonstra um extremo carinho com aquele povo. Na ausência de um padre, há muitos anos ele é convidado para rezar e animar as festas também da Costa de Dentro, Sertão do Ribeirão e Tapera da Barra do Sul.

Divino Espírito Santo,
Senhor do céu e da terra.
Na Santíssima Trindade,
As três pessoas se encerram.

Naquela época o professor Franklin Cascaes já cumpria seu périplo fazendo pesquisas pela região. "Gosto de andar com vocês para aprender os costumes e tradições, porque um dia tudo isso vai acabar", resumia o profético bruxo da Ilha. Foi ele quem motivou os moradores para que cultuassem também a Santa Cruz, a exemplo do Divino. Entretanto, a instalação da primeira cruz tem uma história no mínimo insólita. Na Costa de Dentro, um carpinteiro conhecido como Macedônio havia construído uma cruz para colocar no túmulo da esposa, mas foi convencido pelo festeiro Wenceslau Martins para fincá-la no Saquinho. Convocado para rezar a novena aos pés da Cruz, os moradores solicitaram que ele incluísse também a cantoria do glorioso São Sebastião, o protetor dos animais, para afastar a peste que estava dizimando os cachorros da vizinhança.

Glorioso mártir São Sebastião,
Dai aos teus devotos firme proteção...
Da peste ao flagelo, a fome e a guerra,
Pela sua bondade, afastar da terra.

Um beato que não aceita a intromissão de outras religiões, devoto do Divino Espírito Santo, tocador de rabeca, viola e tambor que não dispensa cerveja e uma cachacinha. Funcionário estadual aposentado, não esconde que gosta de uma boa festa e está sempre disposto a um convite, mesmo que tenha que subir um morro durante 40 minutos, a exemplo do caminho ao Saquinho. Aguarda com ansiedade o final do mês maio para rezar novena na localidade de Barro Vermelho, em Ribeirão da Ilha. Promessa do dono da casa que mandou cozinhar uma massa (em forma de pão), do tamanho do filho que recém-completou 18 anos. Para tanto, o festeiro Valdeli Cardoso de Souza já afina o seu pinho e as cordas vocais.

O mês de março a gente canta pouco, a voz tá rouca, logo dá o pira.
Mês de abril a gente faz que canta, Vai se passando pregando mentira.
Mês de maio é o mês das flores, dos amores e da solidão,
Mês de junho é o mês das fogueiras, leva a memória ao velho Pai João.

A falecida Inácia Borges, liderança da praia do Saquinho, costumava dizer que o dia que o Lili faltar a Festa da Santa Cruz acaba. Se depender o espírito religioso e festeiro do tocador de rabeca, a festa do Saquinho não vai acabar nunca. Ele inclusive está estimulando os moradores a reorganizarem também a Festa do Divino. Ajoelhado, concentrado defronte à Santa Cruz, "cantando" a novena com os moradores em sua volta rezando em coro, ele confunde o visitante ao versar uma mistura de português e latim, que justifica ter aprendido com os velhos rezadores nas "terras dos cantadores".
Ao encerrar a cerimônia religiosa, seu Lili reúne seu grupo de tocadores para fazer a tão aguardada seresta improvisada ao seu modo, próximo à barraquinha da cerveja e do churrasco. Os primeiros raios de sol que despontam atrás do morro do Pântano do Sul parecem aplaudir o solo da velha rabeca, energizando os desnoitados visitantes para um eterno recomeçar, enquanto no salão paroquial o sanfoneiro estica o fole porque o dia está a anunciar-se. O seu repertório é eclético e incansável. Cantoria do Divino, boi-de-mamão, chama-rita, ratoeira, embolada, música nativista e inclusive o terno-de-reis.

Na sua porta da frente, eu boto o meu pé direito.
Com a nossa educação, usemos todo o respeito.
Acorda se estás dormindo, fala se tás acordado,
Vem nos abrir a porta, se tiver do seu agrado.

Fonte:

Mais informações:

http://www1.an.com.br/ancapital/2000/set/05/1ult.htm

Indice = 342

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