Luiz Pereira
Tirinete (2003)
Gravação: Abel Produções Audiovisuais
Faixa 1 do CD "Rabeca Pereira" por Luiz Pereira. Obra de ficção sem fins lucrativos. Produto TAC IPHAN - CEARÁ(2008)/Serviço ONG IPHANAQ. Creative Commons.
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CD Rabeca Pereira será lançado nesta sexta-feira
A programação do Seminário Patrimônio e Desenvolvimento, nos dias 11 e 12 de novembro, em Quixeramobim, também reservou momentos festivos para o público participante. Nesta sexta-feira (12), será lançado o CD Rabeca Pereira, primeiro disco da Coleção Memória Musical Iphanaq. A coleção surge para criar documentos da experiência e espalhar temporalidades através da arte, na condição imemorial e ao mesmo tempo tecida pela criação.
O CD reúne 15 faixas musicais misturando frevos, xotes, mazurkas, carnaval, rancheiras, sambas e forrós, alternando a rabeca e a voz de Luiz Pereira Barros Filho, de 75 anos, um artista da experiência nascido em Quixeramobim. Filho de agricultores, após ter contato com o instrumento dentro de casa, através do pai e de um irmão, Luiz Pereira resolve fazer em 1958 sua primeira rabeca e daí não parou mais de compor.
Após anos embalado pela música, é apenas em 2003 que surge a oportunidade de Luiz Pereira gravar o primeiro CD. Em viagem a Fortaleza, grava o disco por articulação do professor Gilmar de Carvalho, através do Laboratório de Estudos da Oralidade (LEO) da UFC, agora concretizado pela coleção Memória Musical da ONG Iphanaq, iniciada pelo disco. Um pouco da trajetória musical e de vida de Luiz Pereira podem ser conhecidos a partir do texto do professor Gilmar de Carvalho enviado ao site Patrimônio Vivo, após demonstrar entusiasmo com o lançamento do Disco abrindo a coleção do Iphanaq.
Confiram apresentação de autor e obra que será lançada na noite do dia 12 de novembro, às 19h, no Hotel Veredas do Sertão, após a segunda Mesa Redonda do Seminário Patrimônio e Desenvolvimento.
A Rabeca de Luiz Pereira
Por Gilmar de Carvalho
COMEÇO
Na localidade de Poço da Serra, dia 25 de julho de 1935, nasceu Luiz Pereira Barros Filho, herdeiro do agricultor Luiz Barros, que trabalhava na fazenda do político Acrísio Moreira da Rocha (prefeito de Fortaleza de 1947 a 1950) e de dona Argemira de Sousa Barros.
Perguntado se o pai chegou a ser posseiro ou proprietário de alguma gleba, diz, debochado, que “terra ele só tinha nas unhas”, numa alusão ao trabalho braçal, só muito depois protegido pela legislação trabalhista e pela previdência social.
Nas terras do “doutor”, o pai plantava algodão e milho. Curiosamente, nada de gado, apesar de Quixeramobim ser uma das maiores bacias leiteiras do Ceará e a cidade ter- se constituído em função das travessias do gado que ia para o Piauí.
O casal teve sete filhos, sendo três homens e quatro mulheres.
As lembranças do pai são pouco elogiosas: “Não era muito inteligente não”. O que não o impediu de fazer uma rabeca: “Muito malfeita, mas fez”.
A rabeca servia para o pai se divertir em casa, no terreiro, quando chegava do trabalho. Nada de criação ou improviso: os toques eram o range-range de sempre ou o “tirinete” que volteia e não sai do lugar.
A mãe fazia “loiça de barro”, tinha um forno no quintal e tempo do “tibungo ou da louça feita a mão”, a procura pelas peças era muito grande.
Religiosa, a “velha” cantava benditos, fazia novenas no mês de maio, e investia os poucos tostões que tinha para os filhos aprenderem a carta do ABC.
Luiz aprendeu a escrever (desenhar?) o nome e sua vida foi marcada pelo trabalho.
A família deixou a zona rural e foi para a cidade em 1937, ganhando o “cantinho de botar uma casa”. “Seu” Luiz morreu em 1971 e Dona Argemira em 1973.
SOLO
Luiz Pereira se casou com Dalva Felício em 1960. Tiveram seis filhos (4 homens e 2 mulheres) que se criaram no Poço da Serra e estudaram “um pouquinho”.
Dois filhos homens moram em Fortaleza e os outros, agricultores, ficaram mesmo no Poço. Uma filha mulher morreu e a outra passou a morar com a mãe.
A tradição musical (se é que se pode falar assim) da família foi passada para o irmão mais velho, Antonio, que, um dia, anunciou que também faria uma rabeca: “Cortou um pau e fez melhor do que a do pai”.
O irmão já passou a tocar em brincadeiras, festas, e acompanhando concertinas, as lendárias sanfonas “pé-de-bode”, imortalizadas pelo baião de Luiz Gonzaga: “Respeite os oito baixos de seu pai”, cantava o “rei do baião”, referindo-se ao velho Januário.
Apesar de um maior envolvimento com a rabeca, Antonio também não chegou a compor.
Luiz estreou como “luthier”, em 1958, “ano de seca grande”, quando construiu sua primeira rabeca, de umburana, a madeira preferida para fabricar seus instrumentos, pela delicadeza do corte e pela possibilidade de se esmerar nos detalhes.
Com os troncos da umburana de cambão ou de espinho (“Bursera leptophlocos engl”, no jargão botânico), ele faz a frente, as costas e as laterais da rabeca.
Ele mesmo faz questão de cortar o tronco da umburana, com machado.
Aí vem a parte mais delicada e cada “fabricante” tem o seu método de trabalho. Não se faz rabeca de um jeito só.
Luiz Pereira prefere o modelo chamado de “cocho”. Vai escavando o tronco, como se fosse uma gamela, com o uso da grosa, serrote, escopinho e arco-de-serra.
Isso significa que ela terá fundo abaulado e evita a modelagem das laterais que exige madeiras maleáveis, muitas formas para conseguir as dobras, uso de colas e um modo de fazer bem mais complicado.
Com a parte superior da rabeca (também abaulada e em umburana) colada, o instrumento é lixado, antes de ganhar a primeira camada de tinta xadrez, preta ou vermelha, ser recoberta por verniz e receber a aplicação dos adornos, como os quatro corações vermelhos grandes, que saem de dentro de quatro corações menores, como as cartas de um naipe de baralho, “de papel de presente”, como ele prefere dizer, que enfeitam sua rabeca atual, a quarta de sua vida de tocador.
O pescoço, que precisa ser mais rijo, é cortado de pau-d’arco (ipê), mesma madeira do arco, que vai receber as cerdas de cauda de cavalo, e pode servir para a construção da “alma”, pequena e estratégica peça que vai garantir a qualidade do som (e que também pode ser feita de umburana). O cavalete é modelado a partir da reciclagem de plástico.
Ele discorre sobre o toque: “São quatro cordas, de violão” e reafirma que “Tem que ser afinada na hora que vai tocar”. Se o ajuste for feito antes, é perda de tempo. Mudanças de lugar, o calor do dia, ou o tempo mais ameno das noite sertanejas, tudo é pretexto para uma corda afrouxar e exigir um bom ouvido e uma perícia que só os virtuosos, como Luiz Pereira, têm.
MADEIRA
Luiz Pereira, além de tocador, passou a brincar e a inventar objetos de madeira, como forma de exercitar seu lado lúdico e fazer o tempo passar.
Tardes de morrinha, dias cansativos, arrastados, e noites sem muito o que fazer, para quem não gosta de perder tempo vendo televisão.
Começou com um chapéu de palha que enganchou, foi levado pelo vento, e caiu dentro d’água, deixando-o bastante irritado.
Resolveu fazer um de madeira, que ele duvidava (e ainda duvida) que seja levado, “mesmo no meio do redemunho”. Já fez bem uns cinco atendendo, inclusive, a encomendas de peões das fazendas da região do Araguaia.
Para se tornar mais confortável (?), o chapéu é forrado de esponja e pintado de preto com detalhes vermelhos, “para ficar mais bonito”. Aplica tachas de metal nos furos e coloca um barbicacho que o sustenta e também serve de enfeite.
Certa vez, cortou uma faca de madeira, foi parado pela polícia, que desconfiou que ele estava armado, e o revistou com minúcia. Aborrecido, desistiu da arma de brincadeira.
A opção seguinte foram os sapatos, cujo fôrma ele tirou “da cabeça mesmo”, e o cinto de madeira, que imita uma cobra, objetos que ele ainda guarda consigo e foram usados quando se apresentou no programa do Carneiro Portela (à época, “Ceará Caboclo” transmitido pela TV Ceará).
Em meio a tantas curiosidades, a constatação da dificuldade da encontrar umburana, mesmo no Poço da Pedra, “tá difícil, só nas quebradas por aí”.
Sobre sua idéia de fazer isso tudo, diz que “pensa primeiro na cabeça e tem dado certo”.
OBRA
Com a música tem sido assim. Com um tom de falsa modéstia, diz que fez “umas musquinhas feias”. Passeia pelo repertório e toca frevo, forró, xote, mazurka, rancheira, samba, sempre na rabeca, visto que nunca ter-se interessado pela viola, bandolim ou qualquer outro instrumento. Foi uma opção da vida inteira.
Gosta das pelejas, “quando os cantadores são bons de verdade”, como Chico Buriti, que foi embora para São Paulo, ou Zé Manduca.
Faz questão de elogiar o sanfoneiro Filipão e o rabequeiro Juvenal Coelho, que, infelizmente, deixou de tocar.
Suas composições, com muita personalidade e u’a marca fortemente autoral, intercalam o improviso do cantador / aboiador com o toque da rabeca. Quando canta não toca e vice-versa.
É esse o diferencial, o que o torna único dentre os rabequeiros, do lendário Aderaldo, da vizinha Quixadá, ainda lembrado nos sítios do sertão central, ao Cego Oliveira, do Juazeiro do Padre Cícero, passando pelos que estão em atividade no Brasil, como mestre Salustiano ou “seu” Nelson. Rabeca retomada por grupos contemporâneos, como o pernambucano “Mestre Ambrósio” ou o cearense “Dona Zefinha”, para não deixar de falar no “armorial” Antonio Nóbrega ou no saudoso Eduardo Gramani.
Triste é pensar que, como tudo no campo da oralidade, grande parte de sua obra se perdeu, nos desvãos da memória ou nos escaninhos do esquecimento.
Parte do que foi fixado e permaneceu será registrado em seu cd de estréia. Para ouvidos pouco atentos, parece não haver grande diversidade melódica, ainda que ele diga que algumas composições (“Assucena Cheirosa”) tenham sido feitas para o carnaval e que suas peças passeiam da valsas à mazurka, do choro ao xote.
A impressão que fica é de que se tratam de variações, de modulações de uma mesma peça, onde importa mais a vibração que imprime à rabeca e o que ele vai dizendo como um “rapper” sertanejo, um trovador debochado de cantigas, ao mesmo tempo, de amor e de escárnio.
Luiz Pereira queria mesmo se divertir, testemunha, mas nunca tocou dança de São Gonçalo ou reisado, manifestações que são fortes em Quixeramobim, ainda hoje presentes em vários distritos e localidades e que têm no Boi Piauí um dos seus grandes momentos.
Atualmente reside na Comunidade Salgadinho, no Distrito de Passagem, na região do Açude Fogareiro, maior de Quixeramobim, que abastece de água a população urbana.
A vida afetiva, marcada por encontros e desencontros, pode ser compreendida se for feita uma exegese de suas composições, que rejeitam a mulher de idade (comparada ao “cheiro da asa de morcego”), tratada como “couro velho que deve ir para o curtume” e o elogio ao “piteuzinho”, motivo de grande parte do seu repertório.
BIS
Queixava-se que não era levado a sério em sua cidade e foi ao estúdio (ABEL Produções Audiovisuais, do técnico Alencar Jr.) quando tocou no lançamento do livro “Bonito pra chover” (Fundação Demócrito Rocha), em dezembro de 2003, e se hospedou na casa de um filho, na Cidade Nova, bairro limítrofe com Maracanaú.
No estúdio, demonstrou desenvoltura, surpreendeu aos que estavam presentes à sessão e se emocionou, no final, ao relembrar uma de suas filhas, já morta.
O que importa é que Luiz Pereira mantém um humor (talvez não tão politicamente correto) e o que ele canta precisa ser fruído como um jeito diferente de tocar, que ecoa pelo sertão central, chegando a todo o Ceará, que se deixa embalar pela sonoridade rascante de sua rabeca de cocho, esculpida por suas próprias mãos e amplificadora de seu canto ancestral e contemporâneo.
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O jornalista Gilmar de Carvalho é professor do Curso de Comunicação da UFC e Doutor em Semiótica pela PUC-SP.
Rabeca Pereira
Disco 1 da Coleção Memória Musical Iphanaq
12 de novembro de 2010, 19h
No Hotel Veredas do Sertão, em Quixeramobim (Ceará).
Produto não comercializado e viabilizado com recursos de Termo de Ajuste e Conduta (TAC) do Iphan no Ceará.
Mais informações: iphanaq@gmail.com
Fonte: IPHANAQ
Mais informações:
http://www.patrimoniovivo.com.br/blog/iphanaq-blog/categoria/seminario/cd-rabeca-pereira-sera-lancado-no-dia-12-de-novembro
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