Tweetar
Nelson da Rabeca
Artigo de Globo Rural (2010)
Um ex-cortador de cana que virou um rabequeiro respeitado até por estudiosos da música erudita. Essa é a história do alagoano Nelson dos Santos que, depois de descobrir seu talento artístico, ganhou o carinhoso apelido de Nelson da Rabeca. A rabeca é um instrumento rústico, parecido com o violino, que você vai conhecer melhor nesta reportagem de César Dassie e do Francisco Maffezoli Júnior.
Antes de ficar conhecido por conta de sua rabeca, seu Nelson trabalhou nos canaviais de Marechal Deodoro, em Alagoas. Nas lembranças sobre aquele tempo, quando seu instrumento de trabalho ainda era o facão, ele ressalta o dia-a-dia sofrido na época da colheita.
“Se fosse cana crua eu voltava melado, todo cheio de pelo. E quando era queimada ainda era pior. Precisava tomar dois, três banhos para sair o carvão quando chegava em casa. Era um trabalho pesado. Eu não tenho saudes deste tempo não”.
“Eu cortava cana com esse facão. Agora eu faço a rabeca com ele. Tá curtinho, tá curtinho, mas ainda está bom. Foi encurtando porque eu fui fazendo a rabeca e ainda gasta mais do que cortando cana”.
Além da produção de cana, o município de Marechal Deodoro é dono da bela paisagem da Lagoa Manguaba e, também, de um dos pontos turísticos mais famosos de Alagoas: a Praia do Francês, a menos de 30 quilômetros de Maceió.
Foi lá que seu Nelson começou a mostrar seu talento na música, chamando atenção de milhares de turistas. A nosso pedido, ele voltou e foi de guarda-sol em guarda-sol levando o som da sua rabeca.
Hoje seu Nelson não vem mais na praia para ganhar dinheiro. Deixou para trás a dupla jornada, de quando se dividia entre o canavial e a praia. “De meio dia inté quatro horas eu ganhava mais dinheiro do que cortando cana quinze dias no canavial. Agora só faço show. Eu me envergonho de pedir dinheirinho na praia. Quando tocava na praia, não tocava tão bem quanto hoje porque estava começando e mesmo assim ganhava dinheiro. E o povo diz que cavalo véio não aprende passada, mas eu aprendi”.
Tanto aprendeu que, em 2003, foi parar no Programa do Jô. “Já toquei com muito artista bom, já toquei com Hermeto Pascoal. Já toquei mais o Siba, mais Mestre Ambrósio”.
Assim como acontece com outros rabequeiros, para ser músico, seu Nelson teve que fabricar seu próprio instrumento, como conta a violinista Catarina de Labourê. “A história do seu Nelson, eu acho que merece um filme, porque o seu Nelson com 52 anos, pai de dez filhos, ele encontra, se depara, com uma televisão com um violino e aquele momento ele se sentiu iluminado como se Deus tivesse falando para ele, que aquela era a forma que ele tinha para manter a família dele, né? O jeito do seu Nelson também tocar é muito dele. Ele se inspirou no violino, no violinista que estava tocando, mas ele buscou a anatomia do corpo dele, corcundo do corte mesmo, para poder adequar aquele instrumento”.
Num puxadinho no fundo de sua casa é o local onde seu Nelson constrói suas rabecas. As mãos de músico dão lugar às mãos de artesão, com o uso do enxó, uma ferramenta aí que parece uma enxadinha e o facão do corte da cana. “A medida, eu meço assim na mão. O comprimento, dois palmos e um pouquinho, às vezes, é menos de dois palmos. É tudo a olho, então não tem uma rabeca igual a outra. O som é diferente. A madeira é da fruta-pão, é que o povo aqui de Alagoas planta nos quintais. Ela bota aquela fruta do tamanho de um coco. Quando ela está muito velha, ele derruba. Tem vez que eu compro e outras eles me dá. Então eu faço a rabeca”.
Para seu nelson, rabeca boa é rabeca bem cavada, ajustada. “Se deixar ela plana, o som fica preguiçoso para sair para fora. Se deixar ela toda assim, com o bojo para frente aí o som é muito”.
Depois de muito cavar, comparar, lixar é hora de colocar as cordas e afinar. Quem olha uma rabeca pela primeira vez pode imaginar que ela não passa de um violino rústico, mal acabado. E olha há até um certo parentesco entre os dois. Mas a rabeca, hoje, é considerada um instrumento com identidade própria, seja por suas características de som, pelo jeito de tocar e até por não respeitar nenhum padrão no seu formato.
O médico Gustavo Quintella é um estudioso da cultura popular e um apaixonado por instrumentos antigos. Na sala de sua casa ele tem até uma réplica francesa do século dezoito. No contato com o universo musical, se encantou pela história das rabecas. “A rabeca, que se chama hoje, é um instrumento, é o violino do caboclo. É um instrumento fabricado artesanalmente pelos próprios músicos que tocam ele, cada instrumento tem a sua personalidade, o seu som próprio e a sua afinação própria. O termo rabeca, a palavra rabeca, vem do árabe, rabab, que virou rabec em francês e depois virou rabeca em português. O que a define é justamente a variedade”, diz.
Aproveitando a rabeca na mão não demora para seu Nelson mostrar uma música chamada silence. “Essa música toca nos dedos quase todos. E tem música que descansa o dedo de um para o outro, né. E essa tem que tocar os dedos quase tudo de uma vez só. Então é mais difícil essa”.
A música silence foi parar no repertório de um doutor em rabecas, Luis Fiamings, da Universidade Estadual de Santa Catarina, em Florianópolis. Os dedos agéis do profissional e a gravação da música no estúdio revelam a qualidade de som que este instrumento é capaz de produzir. “Essa rabeca o seu Nelson me deu de presente, eu tenjo muito orgulho de tê-la. Diferente do violino que é padronizado, a rabeca cada um tem uma”.
De volta a Alagoas seu Nelson nos faz uma revelação sobre sua música silence, que tanto chamou a atenção dos entendidos. “Eu acho uma coisa fraca, mas quem estudou acha uma coisa difício e acha bom”.
No quarteto que se apresenta hoje com seu Nelson está um amigo no triângulo, a mulher na voz, a filha no recoreco e a neta na zabumba. Seu Nelson tem hoje 81 anos e continua fazendo rabecas. Vende cada uma por 600 reais.
Fonte: Globo Rural
Enviado por Iain Mott.
Indice = 47
Deixar Comentário
ERROR: permission denied for table comentarios