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Ana Soares de Sá Oliveira - A Rabeqeira da Tradição

Ana Soares de Sá Oliveira

A Rabeqeira da Tradição (2016)

Treze anos de buscas, milhares de quilômetros rodados, visita aos 184 municípios do Ceará, e, finalmente, a equipe do projeto "Rabecas da Tradição"(Gilmar de Carvalho e Francisco Sousa), encontrou a primeira rabequeira cearense da tradição. Ana Soares de Sá Oliveira, vive na localidade de Baixio dos Gaviões, Umari, cerca de 400 km de Fortaleza. Toca rabeca desde os 15 anos, e herdou do pai um violino francês. Nunca viveu de música, toca por prazer, e gosta do que faz.

PROTAGONISTA
Muitas jovens se iniciam na rabeca nos projetos de Ong´s, Prefeituras, e Igrejas. A música, nestes casos, pode ser um interesse passageiro ou uma exigência familiar. Não é bem o objetivo do levantamento do "Rabecas da Tradição".

Viajamos para um evento do IPHAN, no Crato (3 e 4 de dezembro de 2015), no qual seriam discutidos o cordel e a cantoria como cultura imaterial. brasileira.

Na volta, decidimos visitar o rabequeiro Chico Barbeiro, na cidade de Baixio. Chico é uma figura de bem com a vida, gosta de tocar e o faz com alegria. Faz rabecas, guitarras e bandolins usando madeira e "pvc", sua marca registrada de luthier.

Fomos recebidos por ele, aos berros, dizendo ter localizado uma rabequeira. Queria saber quando iríamos lá. Eram quatro da tarde do sábado (5 de dezembro) e não hesitamos: "Agora". Seguimos os doze quilômetros que separam a casa dele do Baixio dos Gaviões, cujo "batismo" não vem da ave de rapina, mas da família "Gavião", que se estabeleceu por lá, e deu nome a este Baixio, no plural.

Dona Ana não estava em casa e só chegaria à noite. Fora tocar em Triunfo, Paraíba. Fomos recebidos por uma sobrinha e vizinha. Esperamos ansiosos. Quando ela chegou, conversamos muito, e deixamos as fotos para a manhã do dia seguinte.

Depois da entrevista, rolou uma sessão onde ela tocou o que gosta. Seu Chico tinha levado uma de suas rabecas, apontou várias músicas, e estava feita a festa. Voltamos para o Baixio, eufóricos, e quase não conseguimos dormir.

Apesar da noite e do cansaço, a conversa com dona Ana rendeu. A filha de José Antonio de Sá, conhecido por Zé Neco, e de Luzia Soares Dantas, nascida a 24 de outubro de 1947, é uma mulher discreta, sem maquilagem, com cabelos brancos que ressaltam a passagem do tempo. Representa a ética sertaneja. Cultiva a hospitalidade, mesmo falando baixo e sendo pouco expansiva. A educação formal não foi das mais longas, visto ter largado os estudos depois de concluído o quinto ano primário.

FAMÍLIA
Zé Neco morreu em julho de 2014, com 100 anos completos. Lúcido, contava histórias, e trabalhou até depois dos noventa. Dona Luzia faleceu, em janeiro de 2015, aos noventa e um anos de vida. Ferreiro, fazia os instrumentos com os quais trabalhava na sua propriedade: foices, roçadeiras, machados, pás, enxós, tudo tinha a sua assinatura. Fez um revólver que se confundia com o original, de tão bem feito que era.

A casa é bonita, com piso de ladrilhos de barro cozido, fachada de tijolos aparentes, e um sótão, ao qual se tem acesso por uma escada removível, onde guardava o feijão e o arroz colhidos de suas terras. Carpinteiro, fazia mesas, cadeiras, baús, armários. A maioria dos móveis da casa foi feita por ele. A oficina anexa à casa da família, necessita de um restauro, difícil de ser bancado pela família.

Era um homem trabalhador e de visão. Sabia que as terras que possuía não eram férteis, e montou um plano para transformá-las. Negociou com os pecuaristas vizinhos e, todos os dias, recolhia em uma carroça o esterco do gado, para fertilizar suas terras. Cavou um poço, que ainda hoje atende à comunidade, e, por meio de um motor e de uma bomba, tinha como regar seu chão. Daí a cultura de arroz, o pequeno engenho que transformava em rapadura o canavial e as plantações de bananeiras. Cultivava algodão, que os filhos colhiam, vendido para as usinas de beneficiamento.

Dona Luzia costurava, bordava, fazia renda de bilros, fiava redes em tear manual e transmitiu estas artes às filhas Ana, Maria e Honorina. O casal teve dois filhos, Estácio e José (Zeca), ambos ferreiros.

Zé Neco nunca abriu mão do toque da rabeca, um dos seus xodós. O filho Estácio tocou nas festas da região, com o acompanhamento de Zeca no pandeiro. Ana gostava de olhar o pai tocar a rabeca e aprendeu a afinar com ele. "Quando ele soltava, eu pegava", conclui. Começou a tocar entre os quinze e os dezesseis anos. Tocava de "oitiva". Vinha gente de longe para aplaudi-la. Era curioso ver uma mocinha empunhar o arco e tirar som das quatro cordas. Ela ficava encabulada.

SANFONA E RABECA
A primeira paixão de dona Ana, no entanto, foi a sanfona. Formou uma banda com as irmãs: Maria tocava pandeiro e Honorina (já falecida) dava "show" com o triângulo. Ana tocava rabeca em casa. Para animar as festas, nada como a sanfona. O repertório incluía músicas dos anos 1960, muito xote, baião, valsa e choro e os "clássicos" do Luiz Gonzaga. Acompanhavam as quadrilhas juninas e os "caretas", os mascarados da Semana Santa. Tocou uma vez em um comício, para um candidato que lhe prometeu uma sanfona e nunca cumpriu a palavra. A banda das irmãs tocava em Triunfo, Umari, Baixio, pé da serra do Trapiá, serra da Catingueira, e se desfez quando elas se casaram e deram outros rumos para as vidas.

Dona Ana se uniu, dia 18 de abril de 1979, ao agricultor Antonio Militão de Oliveira, depois de casados, passaram dois anos no Trussú, Acopiara, onde ele nasceu, de onde partiram para São Paulo, onde viveram 13 anos, na expectativa de uma vida melhor. Têm um filho chamado Anderson, que vive com eles. Estácio e família também foram para São Paulo, onde receberam a visita do pai, que levou a rabeca para presentear dona Ana. Estácio morreu em 2005.

Não é bem uma rabeca, mas um violino francês com "certificação". Traz a grife da luteria parisiense Jerôme Thibouville Lamy & Cie, impressa em papel e afixada ao fundo do instrumento, pelo lado de dentro. Esta oficina funcionava no número 68 bis ao 72 da Rue de Réammur. Fundada em 1867, fechou as portas no final em 1969. Manteve até o final uma tradição de excelência.

Ela conta que, certa vez, a rabeca do pai se descolou toda e ele fez questão de consertá-la. Custaria uma fortuna mandar o violino para Paris. Detalhista, ele acabou de desmanchá-lo, raspou tudo, colou as peças de novo e colocou adesivos de aço inox, como uma cinta e um coração, que ainda hoje estão bem colados ao pescoço. Não deu para notar qualquer diferença em relação ao som que emitia antes, assegura dona Ana.

PERFORMANCE
Dona Ana não compôs, mas tem um repertório rico. Ela se apresenta em Umari, é sempre convidada para a Festa do Município, e anima também os bailes da "terceira idade". Admite que "tem prazer de tocar" e interpretou uma série de composições que cobriram boa parte do que o rádio tocava ou que as pessoas dançavam na segunda metade do século XX.

O pai gostava de tocar "Cachorro Acuado", e com esse instante de saudade, ela se despediu de nós, depois da sessão das fotos e de mais uma rodada de conversas (outras dúvidas seriam esclarecidas pelo telefone). Estava à vontade diante da câmera. Era a dona da casa, da rabeca, e nossa anfitriã.

Atingimos a meta e ficamos eufóricos. Foi uma busca incessante, com pistas falsas, algumas frustrações e a alegria final. Tínhamos chegado, finalmente, a uma rabequeira da tradição: dona Ana Soares de Sá Oliveira. Ela era a primeira mulher e a 184ᵃ de nossa listagem.

Gilmar de Carvalho / Especial para o Caderno 3
Fotos de Francisco Sousa


Fonte:

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